quinta-feira, 8 de março de 2018

A Aisthésis do belo em Kant



A AISTHÉSIS DO BELO EM KANT – ARTIGO

JOÃO BÔSCO ALMEIDA CRUZ¹

RESUMO

O que nos move nesse artigo é o desejo de saber ou de procurar entender o que é belo sobretudo, diante da subjetividade. Porém, diante da existência do juízo estético, colocam-se ainda os problemas de estabelecer o que seja propriamente o belo que nele se manifesta e o de remontar ao fundamento que o torna possível.


INTRODUÇÃO

É necessário antes de tudo clarificar o conceito, a ideia do que seja estética. A palavra é de origem grega αισθητική ou aisthésis que significa “faculdade de sentir”, “compreensão pelos sentidos”, “percepção totalizante”, “sensação”, é um ramo da filosofia que tem por objeto o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. A estética também estuda o julgamento e a percepção do que é considerado belo, a produção das emoções pelos fenômenos estéticos, bem como as diferentes formas de arte e da técnica artística; ainda a ideia de obra de arte e de criação; a relação entre matérias e formas nas artes. Por outro lado, a estética também pode ocupar-se do sublime, ou da privação da beleza, ou seja, o que pode ser considerado feio, ou até mesmo ridículo.
Embora a arte faça parte do mundo humano desde a pré-história e tenha ocupado lugar de grande importância em todas as civilizações, o termo estética só foi utilizado em 1750 pelo filosofo alemão Alexander Baumgarten, conceituando como teoria do belo e de suas manifestações através da arte. De modo geral a estética atribui-se especificamente a tudo o que pode ser percebido como agradável e belo pelos sentidos. Desta forma, como o estudo e teoria do belo e de suas manifestações, a estética constitui um campo de investigação filosófica que pretende alcançar um tipo específico de conhecimento: aquele que se refere ao que é captado pelos sentidos. E como veremos no desenvolver do texto, ele vai se constituir quase que um contraposto ao conhecimento lógico-matemático.

1.     A dialética do juízo de gosto

Diante de um questionamento: O que é o belo? O ser humano pode fazer diferentes juízos. (Juízo de fato, de valor, juízo moral e juízo estético). Ao dizer o que são as coisas atribui-se juízo de fato, dizemos o que são as coisas; mediante o juízo de valor, julgamos se determinada coisa é boa, ruim, agradável, bonita, feia etc... O juízo de valor divide-se em juízo moral e o juízo estético.
Os juízos estéticos são evidentes estabelecidos por si só. Contudo, diante da existência do juízo estético, estabelecem-se dois problemas: primeiro o de determinar o que seja propriamente o belo que nele se manifesta; e o de remontar ao fundamento que o torna possível.
Para Kant o juízo estético não é um atributo da razão e sim da imaginação.  Ele divide a beleza em duas espécies: a beleza livre, que não depende de nenhum conceito de perfeição ou uso; e a beleza dependente, que depende desses conceitos atributivos. Porém, há uma relação precisa e clara entre elas, pois os juízos estéticos estão relacionados com a beleza livre.
A beleza, o belo artístico, estético é diferente do belo, da beleza ontológica, pois a beleza ontológica não pode ser uma propriedade objetiva das coisas, mas é fruto de algo que nasce da relação entre o sujeito e o objeto, é fruto do prazer de nossas mentes. Além disso, é uma propriedade que nasce da relação dos objetos comparados com o nosso sentimento de prazer e que nós atribuímos aos próprios objetos.
Tanto Platão quanto os demais filósofos clássicos, tentaram fundamentar a objetividade da arte e da beleza. Platão afirmava que a beleza é a única ideia que resplandece no mundo. Segundo a ideia platônica, somos obrigados a admitir a existência do “belo em si” independente das obras individuais que, na medida do possível, devem aproximar-se da ideia universal. Ou seja, não há sentido no subjetivismo pessoal da beleza, ela deve estar atrelada a ideia de universalidade.
Para os classistas, o belo é deduzido, estabelecido pelas regras do fazer artístico que se funda a partir do belo ideal, fundado na estética normativa. Estabelecendo qualidade que o torna mais ou menos agradável, independente do sujeito que a percebe. Posteriormente, contrapondo essa ideia, os filósofos empiristas Locke e Hume relativizam a beleza, tendo em vista que ela não é uma qualidade das coisas, mas só o sentimento da mente de quem a contempla. Assim, o julgamento do belo, da beleza depende somente da presença ou ausência de prazer em nossas mentes. A visão do belo, a atribuição de qualidade ao belo e ou a beleza, podemos assim dizer depende do “estado de espírito” da pessoa, na opinião dos filósofos empiristas.
Para Nunes a imagem do objeto referida ao sentimento de prazer, comparada a este e por este avaliada dá lugar ao juízo de gosto, assim definido:

O juízo de gosto ou estético é universalizável: o seu objeto provoca a adesão de outros sujeitos conscientes, na medida em que o prazer desinteressado não é uma satisfação confinada ao que particulariza como indivíduo, mas depende da capacidade de sentir e de pensar, comum a todos os homens. (NUNES 2002, p.49).

Para Immanuel Kant belo é aquilo que agrada universalmente, e não tem conceito definido. O prazer do belo é universal porque vale para todos os homens e, portanto, se distingue dos gostos individuais; entretanto, essa universalidade não é de caráter conceitual ou cognoscitivo. Trata-se, portanto, de uma universalidade “subjetiva”, no sentido de que vale para cada sujeito.
Diante do belo da natureza, nós percebemos como que a presença de um desígnio intencional pelo qual o objeto belo se configura como obra de arte. Ao contrário, diante de uma obra de arte, que segue um desígnio intencional, nós sentimos que ela é verdadeiramente bela quando aquela intencionalidade se oblitera e o objeto parece uma criação espontânea da natureza.
Segundo o pensador Mareau-Ponty arte é advento, a espera, um vir a ser do que nunca antes existiu, como promessa infinita de acontecimentos: as obras dos artistas. No poema (ensaio) A linguagem indireta e as vozes do silêncio, ele escreve:

O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição porque recolhia uma outra: a percepção. A quase eternidade da arte confunde-se com a quase eternidade da existência humana encarnada e por isso temos, no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos, com que compreender nossa gesticulação cultural, que nos insere no tempo. (Marleau-Ponty).

O texto nos faz refletir que o artista é aquele que recolhe de maneira nova e inusitada aquilo que está na percepção de todos e que, no entanto, ninguém parece perceber. O artista apresenta um mundo existente, porém não percebido, mas de qualquer forma nos apresenta um mundo novo, visto pelos olhos e mãos daquele que o expressa assim como o vê.
O poeta Alberto Caeiro, se expressa dizendo que a arte apresenta um mundo novo e eterno, pois o eterno é ausência do tempo, quilo que fora do tempo, permanece sempre idêntico a si mesmo, enquanto o novo é pura temporalidade, puro movimento temporal em que surge o que não havia antes. Porém esse antes não existente, refere-se ao não percebido, ao não perceptível. Vejamos o poema:

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando par a direita e par a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo.

Uma vez que reunidas as duas qualidades, parecidas em contraste, mas não convergentes, podemos dizer que no belo, da natureza ou da arte, é preciso que exista e não exista fim, ou seja, exista como se não existisse, isto é, que a intencionalidade e a espontaneidade estejam fundidas de tal maneira que a natureza pareça arte e a arte pareça natureza.
Portanto, o belo é aquilo que é reconhecido, sem conceito, como objeto de prazer necessário. Trata-se, obviamente, não de uma necessidade lógica, mas sim subjetiva, no sentido de que se trata de algo que se impõe a todos os homens, mas, ao mesmo tempo individualmente.

2. O belo e o sublime: submissos ao crivo do gosto

Antes de adentrarmos no que seja o belo e o sublime, é preciso fundamentar, pautar, dizer o que é a verdade. Pois esses conceitos: belo, feio, sublime, beleza... Estão submissos ao gosto e este é determinado pela verdade. A estética é fundamental porque a beleza é um dos fundamentos da verdade.
A necessidade da arte, ou sua compreensão, não poderá se tornar um conceito real, se não passar pelo crivo do que seja o gosto. O gosto é uma característica individual e particular que pode ser analisada sob a ótica da estética. Mas, qual é o gosto adequado? O que é a beleza? Existe um critério universal dela? Tão subjetivo quanto o gosto é a referência do que seja o belo e o feio, pois são categorias interligadas com a ideia de verdade.
Então o que é verdade?
Para Kant a verdade é decisão ou deliberação orientada por um valor. Ou seja, quando o conhecimento é adequado ao seu objeto. É estar de acordo com os fatos ou a realidade.
Kant distingue o belo do sublime dizendo que ambos nascem de uma relação que desperta no sujeito um sentimento. Só que o fundamento do belo é objetivo, é dado pelo objeto e desperta no sujeito um sentimento de satisfação, de prazer. Desta forma, o belo é aquilo que é moldado com perfeição ao seu fim e, que consequentemente é determinado pelo sujeito. Belo, portanto, é uma qualidade que atribuímos aos objetos para exprimir um estado de nossa subjetividade, sendo assim, não há ideia do belo nem regras para se produzi-lo.
Em sua obra de 1764: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, Immanuel Kant, propõe ao leitor a observar, sob escolhas próprias, o sentimento do belo e do sublime e, em especial, analisar as influências que o côngruo social pode infligir sobre esta visão e sentidos. Diz o autor que o ser humano baliza sua conduta pela crítica externa, pois vive num corpo social e segue o estatuto que o conduz, o qual é socialmente aceitável e previamente escolhido. Por isso, para que as ideias e os conceitos do sentimento do belo e do sublime sejam seguidos, os vícios e fraquezas morais necessitam ser combatidos, com princípios universais de benesses. Isso torna uma ação justa melhor identificável. Na Obra "Observações", o sentimento moral é associado à conduta do homem justo em relação às outras modalidades de conduta, que interagem com ele, surgindo espaço para o sentimento de pudor. Desta forma Kant se propõe à descrição das condutas humanas, a fim de acender a um ponto que capte o todo da natureza humana, de maneira que possa ser conhecido o princípio moral universalizado e este, esteja aos olhos de todos, promovendo a perfeição moral.  Sendo assim, a ideia de belo para Kant está associado a organização social tem um caráter eminentemente de justiça e moral. Isso nos impõe a repensar as implicações dessa interpretação no juízo do gosto, ponto sequencial na discussão kantiana, depois de definido como o sentimento do belo e do sublime manifestam suas propriedades empiricamente nas ações humanas.
Não podemos dar uma definição clara, exata ou absoluta do belo, contudo, podemos estudar suas várias acepções no curso da história. A problemática, a dificuldade de conceituar o belo acompanha a história da filosofia e da humanidade, desde a Grécia Antiga. Já dizia Sócrates “que toda beleza é difícil". Sem querer ou pretender recuperar as discussões sobre o que é belo, pode-se trabalhar com duas ênfases que recortam as reflexões sobre o belo na tradição filosófica: uma a partir de Aristóteles que o define como ideia objetiva (na Metafísica, afirma: "As principais formas de beleza são a ordem e a simetria e a definição clara") e outra para a qual a beleza é determinada pela experiência de prazer suscitada pelas coisas belas (nos termos de Platão, em O Banquete). Kant (1724 - 1804), na Crítica do Juízo (1790), propõe a superação da polaridade ao distinguir a beleza de qualquer juízo racional ou moral, como veremos logo mais. Desse modo, defende o caráter não determinado do juízo estético. Segundo Kant, quando se afirma que algo é belo isso é feito sem ter por base um conceito que respeite essa afirmação, ainda que supostamente seja válida para todos.
O duplo modo de conceituação da beleza é utilizado ao longo da história da arte, desde a Grécia Antiga. Ele é reanimado na oposição entre o belo clássico - objetivo, universal e imutável - e o belo romântico - que se refere ao subjetivo, ao variável e ao relativo.
         Sendo assim ao que se refere no âmbito do Belo, dois aspectos fundamentais podem ser particularmente destacados:
1.       A estética iniciou-se como teoria que se tornava ciência normativa às custas da lógica e da moral - os valores humanos fundamentais: o verdadeiro, o bom, o belo. Centrava em certo tipo de julgamento de valor que enunciaria as normas gerais do belo;
A estética assumiu características também de uma metafísica do belo, que se esforçava para desvendar a fonte original de todas as belezas sensíveis: para Platão um reflexo do inteligível na matéria, para Hegel uma manifestação sensível da ideia o belo natural e o belo arbitrário ou humano
Para Kant, a estética é um estado de vida de direito próprio, uma capacidade de fruição intimamente relacionada a outras capacidades cognitivas do ser humano, sem depender, necessariamente, da aquisição de conhecimento, ou seja: para contemplar o belo, o sujeito não se vale das determinações das capacidades cognitivas das faculdades do conhecimento. Na percepção do objeto, o sujeito abarca a plenitude de suas características e não as características isoladas.
Mesmo que essa associação possa dar a ilusão de que o sujeito fique, de certo modo "preso" ao objeto por conta de sua capacidade perceptiva, de acordo com Kant nessa percepção estética, o sujeito se liberta das imposições do conhecimento conceitual. Essa liberdade nos permite, segundo Martin Seel, "experimentar a determinabilidade de nós mesmos no mundo" e ainda completa que Kant:

Vê na experiência do belo (e mais ainda do sublime) a realização das capacidades mais elevadas do ser humano. A riqueza do real admitida na contemplação estética é experimentada como afirmação prazerosa de sua ampla determinabilidade por nós. (Seel, 2004).

Assim podemos entender que os sentimentos de prazer e desprazer em Kant estão ligados as sensações estéticas e pertencem ao sujeito, como algo subjetivo, mas inerente ao próprio ser, e são estes sentimentos subjetivos, não lógicos que emitem o conceito do belo, são eles que formam o juízo do gosto, do belo e bonito. Por isso, a percepção de um objeto ou fenômeno que instiga a sensação de prazer provoca a fruição ou gozo e a essas sensações damos os nomes de belo, bonito e beleza. A questão do belo seria então algo subjetivo, e por ser subjetivo é livremente atribuído, sem parâmetro, fundado na “norma pessoal”, no “eu pessoal”. São os sentimentos oriundos das sensações agradáveis que emitem o juízo do belo, induzindo o desejo de permanecer usufruindo tais sensações. O interesse imediato diante das sensações prazerosas é a continuidade. A partir desse “espanto”, dessa “admiração”, a arte constituísse em passagem do instituído para o instituinte, ou seja, uma transfiguração do existente numa outra realidade que o a faz renascer e ser de maneira inteiramente nova.

REFERÊNCIA

ARANHA, Maria Lucia de Arruda. MARTINS. Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. Vol. Único. Ed. Moderna. São Paulo, 2009.
CHAUÍ, Marilena. Iniciação à Filosofia. Vol. Único. Ed. Ática. São Paulo, 2011.
COTRIM, Gilberto. FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. Vol. Único. Ed. Saraiva. São Paulo, 2010.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte, Editora Ática, São Paulo, 2002, p. 49.
SEEL, Martin. A libertação da estética filosófica por Kant. Tradução de Alfred Keller; Goethe Institut, 2004.

¹João Bôsco Almeida Cruz é Mestrando em Ciências da Religião pela PUCGO, Graduado em Filosofia pela PUCSP e Teologia pela PUCGO, é especialista no Ensino de Filosofia e Sociologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciência. Professor de Filosofia e Antropologia Jurídica na FESURV, de Filosofia e Ética Profissional, Filosofia da Educação, Fundamentos Filosóficos para Serviço Social, Sociologia e Antropologia nas Faculdades Unidas do Vale do Araguaia. Professor de História e Geografia no Colégio Monteiro Lobato em Barra do Garças/MT e, professor de Filosofia, Sociologia e Ensino Religioso na rede pública do Estado do Mato Grosso. E-mail: bosco_cruz@hotmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário