sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O homem moderno e a descrença na Filosofia

O homem moderno e a descrença na Filosofia


A inversão de que trato aqui, a consequência das descobertas de Galileu, embora tenha sido muitas vezes interpretada em termos de inversões tradicionais (1) e, portanto, como integrando a história ocidental das ideias, é de natureza completamente diferente. A convicção de que a verdade objectiva não é dada ao homem e que ele só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz não advém do cepticismo, mas de uma descoberta demonstrável e, portanto não leva à resignação, mas a uma actividade redobrada ou ao desespero. A perda do mundo na filosofia moderna, cuja introspecção descobriu a consciência como sentido interior com o qual o indivíduo sente os seus sentidos, e verificou que ela era a única segurança da realidade, difere não só em grau da antiga suspeita dos filósofos em relação ao mundo e aos outros seres que com ele compartilhavam o mundo; agora, o filósofo já não volta  as costas a um mundo de enganosa perecibilidade para encarar outro mundo de verdade eterna mas volta as costas a ambos e recolhe-se dentro de si mesmo. O que descobre na região do ser interior, é, novamente, não uma imagem cuja permanência pode ser observada e contemplada, mas, pelo contrário, o constante movimento da percepções sensoriais e a actividade  mental, em movimento não menos constante. Desde o século XVII, a filosofia produziu os seus melhores e menos discutidos resultados quando investigava, num supremo esforço de auto-inspecção, os processos dos sentidos e da mente. Sob este aspecto grande parte da filosofia moderna é, realmente uma teoria da cognição e da psicologia; e nos poucos casos em que as potencialidades do método cartesiano de introspecção foram plenamente realizadas por homens como Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, somos tentados a dizer que os filósofos experimentaram com o próprio ser não menos radicalmente e talvez mais afoitamente que os cientistas experimentaram com a natureza.

Por mais que possamos admitir a coragem e respeitar a extraordinária engenhosidade dos filósofos no decurso de toda a era moderna, não se pode negar que a sua influência e a sua importância diminuíram como nunca antes ocorrera. Não foi no pensamento da Idade Média, mas no da era moderna, que a filosofia passou a segundo ou mesmo a terceiro plano. Depois de Descartes ter baseado a sua filosofia nas descobertas de Galileu, a filosofia parece condenada a seguir sempre um passo atrás dos cientistas e das suas descobertas, ainda mais espantosas que as de Galileu cujos princípios tenta arduamente descobrir ex post facto e ajustar a alguma interpretação geral da natureza do conhecimento humano. Como tal, porém a filosofia não era necessária aos cientistas que - pelo menos até ao nosso tempo – acreditavam não precisar de uma serva, e muito menos de uma que pretendesse “carregar o archote à frente da sua preciosa ama” (Kant). Os filósofos tornaram-se epistemologistas, preocupados com uma teoria geral da ciência da qual os cientistas não necessitavam, ou tornaram-se realmente aquilo que Hegel queria que fossem: os órgãos do Zeitgeist, os porta-vozes através dos quais o estado de espírito geral da época era expresso com clareza conceptual. Em ambos os casos quer pesquisassem a natureza ou a história, tentavam compreender e fazer face ao que estava a acontecer sem a sua ajuda. Obviamente a filosofia sofreu mais com a modernidade que qualquer outro campo de ocupação humana; e é difícil dizer que sofreu mais em decorrência da quase automática elevação da actividade a uma dignidade completamente inesperada e sem precedentes ou da perda da verdade tradicional, ou seja, do conceito de verdade que havia por trás de toda a nossa tradição.



Hannah Arendt, A condição Humana, Relógio D’Água, Lisboa  2001, pág. 359, 360, 361

(1) A inversão operada por Platão coloca-se em relação aos conceitos Homéricos; assim a vida em comum é a caverna quando para Homero seria a luz, pelo contrário para Platão a luz é a da alma fora da convivência com os outros homens. O que em Homero era sombra, a alma, é em Platão o inverso, é o corpo que é a sombra da alma. Exemplo que, para Arendt, pretende demonstrar a inversão operada pela filosofia em relação aos conceitos de acção e contemplação tradicionais. A vida activa dos filósofos é a vida do pensamento que pressupõe o prévio afastamento e a distanciação da vida mundana da polis mas que não prescinde dela, pelo contrário, deverá querer modelá-la e transformá-la de acordo com o seu lugar privilegiado, ou compreendê-la conceptualmente e impor-lhe limites éticos.


Essa inversão operada por Platão da vida activa para a vida contemplativa, na hierarquia das actividades consideradas superiores, vai ter como consequência o afastamento  progressivo da filosofia dos assuntos mundanos e consequentemente da sua capacidade para intervir no mundo real, no mundo dos acontecimentos. Com a introdução do conhecimento moderno esta hierarquia vai viver um novo estatuto, a vida activa e a vida contemplativa ganham um novo significado; a vida activa é condicionada pela produção, o homem da polis, destinado segundo a tradição grega,  aos grandes feitos e grandes palavras, dá lugar ao homem fazedor, aquele que produz os instrumentos que permitem transformar o mundo, o que é o mesmo que produzir um outro mundo não acessível aos sentidos, (uma vez que o mundo que é dado a ver por estes novos instrumentos não é o mundo que se vê em comum)o mundo científico/tecnológico. A Filosofia ficará remetida para o exame da consciência, afastamento do comum na medida em que o produto da consciência é algo que não pode ser partilhado enquanto fluxo incessante de representações. Marca de uma outra inversão em relação ao projecto filosófico da tradição antiga que exigia distanciação em relação ao comum de modo a compreendê-lo, o novo projecto busca a compreensão do sujeito  enquanto singularidade, o comum passa a ser, não o espaço sensível dos acontecimentos mas o espaço universal da linguagem racional, a matemática,  concebido como o único espaço onde os humanos se podem entender. Deste modo a linguagem da Filosofia passa a ser algo fora da linguagem comum, algo sobre o qual os homens não se entendem, um espaço de ideias que não versam o mundo exterior ao homem e também não versam o que é comum aos homens.

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